Romana perdeu para o amianto marido, irmão, filhos, netos...
por Conceição Lemes
Começou em 10 de dezembro/09, em Turim, norte da Itália, o maior julgamento da história contra o amianto, ou asbesto, a fibra cancerígena.
No banco dos réus: Stephan Schmidheiny, bilionário suíço proprietário da Eternit Itália de 1976 a 1986; e Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, o sócio minoritário e administrador da empresa no início dos anos 70.
Acusações: catástrofe ambiental, violação das normas de segurança do trabalho e morte de 2.272 ex-empregados da empresa que ficava em Casale Monferrato, cidade piemontesa.
“Schmidheiny também esteve à frente da Eternit do Brasil”, afirma a engenheira Fernanda Giannasi, coordenadora da Rede Virtual-Cidadã pelo Banimento do Amianto na América Latina. “Aqui, existem 3.500 vítimas que receberam indenizações vis e representam apenas a ponta do iceberg.”
“Em Osasco, na Grande São Paulo, aconteceu o mesmo que em Casale Monferrato”, observa Fernanda. “Porém, na Itália o amianto foi totalmente banido e a Justiça, sensibilizada com as denúncias de vítimas e familiares, de homicídio culposo, abriu processo contra os donos da Eternit Itália.”
O livro La Lana della Salamandra (A lã da Salamandra), de Giampiero Rossi, publicado como encarte do jornal italiano L’Unitá, mostra a história de Romana Blasotti. Símbolo da luta contra a fibra cancerígena na Itália, Romana perdeu marido, irmão, filhos, netos, amigos para o amianto.
La Lana della Salamandra retrata a saga de trabalhadores e trabalhadoras, moradores de uma pequena cidade italiana, cidadãos e cidadãs simples, que, com o apoio de sindicalistas, jornalistas, técnicos e cientistas, transformaram suas tragédias pessoais em uma luta coletiva. Mais ainda. Conseguiram convencer os mais brilhantes membros do judiciário da Itália a aceitar a causa e transformá-la no Tribunal do Século. Pela extensão do problema e imensa publicidade em todo o mundo, já está sendo comparado ao Tribunal de Nuremberg.
Silvia de Bernardinis é historiadora e antropóloga italiana, mora no Brasil e é a autora desta excelente resenha sobre o livro de Giampiero Rossi. Aprecie-a agora.
La Lana della Salamandra, por Silvia de Bernardinis
“[...] era até amena de se ver, leve como um talco, sutil como a areia de certas praias tropicais”. São as palavras de Romana, uma mulher – irmã, esposa, mãe, avó – que se vê em poucos anos privada de seus afetos – levados embora brutalmente pela poeira branca e mortal que desde 1906 irrompeu na paisagem de Casale Monferrato – cidade do norte da Itália – até tornar-se seu traço constitutivo. A história de Romana Blasotti, mulher símbolo da luta de Casale contra a fábrica de amianto Eternit, presidente desde 1988 da Associação dos Familiares das Vítimas do Amianto, abre o livro de Giampiero Rossi, La Lana della Salamandra, que reconstrói as etapas principais de trinta anos de batalhas travadas pelos trabalhadores da fábrica e pela comunidade local contra a multinacional helvético-belga.
A instalação da fábrica muda a vida e o destino de todos os seus habitantes, não apenas dos trabalhadores da Eternit – operários, dirigentes e funcionários sem distinção de classe – mas também das crianças que brincam nos parques e nas ruas ao redor dela, do funcionário de banco, do padeiro, dos quem nunca pisaram na fábrica, mas que respiraram o ar envenenado pelas fibras de amianto espalhadas na atmosfera.
Oitenta anos de atividade (a indústria fechou em 1986) e 2272 mortos até hoje só em Casale, o epicentro italiano da tragédia do amianto, e infelizmente o balanço está destinado a aumentar nos próximos dez anos, como indicam as pesquisas epidemiológicas.
A presença da fábrica de amianto Eternit fora recebida como uma bênção, representando o progresso, a possibilidade de uma perspectiva de vida mais estável para uma área que até então vivia de agricultura. Nada se sabia sobre a toxicidade do amianto pelo menos até a década de sessenta, e quando os resultados das investigações cientificas comprovaram os efeitos letais provocados pela exposição às fibras de amianto, a notícia não foi divulgada e pouco ou nada mudou em termos de segurança na vida das fábricas espalhadas pelo mundo. Material barato, resistente e versátil, o amianto garantia um retorno econômico mais importante do que a vida humana.
A história pessoal de lutos de Romana cruza com a de dois trabalhadores, amigos e colegas de Mario, marido dela, operário da Eternit morto por mesotelioma pleural, o câncer causado pela exposição ao amianto. Os dois trabalhadores, Bruno Pesce e Nicola Pondrano, representantes sindicais da CGIL, que assistem ao adoecimento e à morte causada pela mesma doença de tantos companheiros de trabalho decidem, quase que quixotescamente, desafiar o colosso Eternit.
Com um trabalho paciente e persistente, eles investigam e descobrem os nexos entre a exposição ao mineral e os casos de câncer, evidência sempre negada pelos responsáveis da Eternit pelos quais não havia nenhum tipo de risco para a saúde dos trabalhadores expostos ao amianto; enfrentam a resignação dos trabalhadores – assustados pelo espectro da demissão agitado pela empresa que, apesar de tudo, garante o salário e alguma indenização –, superam as tentativas de divisão e de desmobilização da luta, e abrem progressivamente brechas na sociedade para tornar o problema do amianto e do direito à salvaguarda da saúde nos lugares de trabalho uma questão de justiça e uma batalha em favor da dignidade humana.
Em poucas densas páginas, a reconstrução dos dramas individuais, escondidos e quase negados inicialmente, a lenta tomada de consciência coletiva, a dor e as lutas que saem da porta da fábrica para se tornarem denúncia e bandeira coletiva de uma comunidade – protagonista de uma batalha histórica contra o amianto e contra um império econômico-financeiro que enquanto tal parecia ser invencível.
Pouco a pouco Casale alcança todas suas reivindicações: o fechamento da fábrica, as leis que proíbem o uso do amianto e o reconhecimento dos direitos de assistência médica e econômica das vitimas e de seus familiares, os processos e as condenações dos dirigentes locais da empresa e, finalmente, o salto de qualidade, a chamada em causa dos donos, os herdeiros da dinastia Schmidheiny e o barão Jean Marie Ghilslain de Cartier de Marchienne, apontados pelo procurador da República italiana Raffaele Guariniello – empenhado desde os anos Oitenta na defesa dos direitos trabalhistas – como diretos responsáveis pelas 2969 mortes causadas pela “lã da salamandra” na Itália, nos quatro estabelecimentos presentes no território, com a acusação de não ter divulgado as informações sobre a nocividade do mineral e de não ter aplicado as normas necessárias à salvaguarda da vida dos trabalhadores e da população.
Giampiero Rossi consegue reconstruir e individuar a particularidade da batalha de Casale – que hoje é referência mundial para todos que lutam pelo banimento do amianto no mundo e pelo respeito e a salvaguarda da saúde no trabalho – e que ele resume como a “estratégia do caracol”, um trabalho paciente e tenaz levado adiante inicialmente pelo sindicato, cujo papel se torna emblemático pela sua capacidade de superar o caráter inicial de simples, ainda que necessária e importante luta sindical, através de uma conscientização progressiva da comunidade local e da sociedade italiana, uma luta que se torna vitoriosa por sua capacidade de agregar e aglutinar os mais diversos setores da sociedade civil, advogados, promotores de justiça, médicos, políticos e funcionários públicos, ambientalistas, cada qual contribuindo parcial e decisivamente no assalto ao gigante.
Mas não se esgota apenas aqui a lição da batalha de Casale. A ela devemos reconhecer o mérito de ter posto ao centro de sua estratégia não apenas os valores fundamentais do direito ao trabalho e da defesa do emprego, mas também a garantia da segurança e da preservação da vida e da saúde do trabalhador que é paradigmaticamente individuada como conditio sine qua non do trabalho, quando morrer pelo trabalho e por suas conseqüências dele era um necessário tributo a ser pago a uma concepção cega e limitada da idéia de progresso, ao lucro desenfreado, a uma modernização sem modernidade, incapaz de respeitar o valor da vida humana e do meio-ambiente – um tributo que ainda hoje tantas pessoas pagam nas áreas mais pobres do planeta.
Esta batalha de pioneiros contra a barbárie de uma visão deformada dos valores humanos e a favor da civilização, muito nos ensina e muito pode ajudar aos quem ainda hoje lutam para o reconhecimento de direitos básicos dos trabalhadores.
O balanço desta luta iniciada há trinta anos chega agora ao seu ato final graças à determinação do Procurador Raffaele Guariniello. É difícil prever qual será o êxito do processo penal movido contra os donos da Eternit, mas de qualquer forma Romana e todos os protagonistas da guerra contra o amianto poderão dar um rosto àquele poder que parecia invisível e inalcançável.
La Lana della Salamandra. La vera storia della strage dell’amianto a Casale Monferrato, de Giampiero Rossi, Roma, Ediesse Editora, 2008. O livro pode ser adquirido pela internet a
Comentários
Postar um comentário