O monge pé de chinelo


Ao lerem a matéria abaixo, compreenderão a espiritualidade carmelitana encarnada num homem de fibra que nos inspira e encoraja em lutar pela justiça e pelos direitos humanos diuturnamente. Fernando, és grande mestre, mesmo sem quereres.



14/11/2010 | 00:05 | José Carlos Fernandes, com fotos de Antonio Costa(Gazeta do Povo)



Em 1982, o paulista Fernando Gois fez os votos de castidade, pobreza e obediência na ordem dos carmelitas descalços. Naquele mesmo ano, deixou o conforto do convento para formar uma comunidade inserida numa favela da Vila Lindoia. A entrega à pobreza não parou por aí: o “monge” catou papel, dormiu ao relento e peitou policiais em defesa dos meninos em situação de rua. Para eles, fundou uma chácara em Mandirituba. Agora, prepara-se para ser andarilho. “É uma questão mística”, diz o homem das chinelas: desde os votos ele nunca mais calçou sapatos.

“Lá-lá-lará, lá-lá-lará... Do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar...”
Depoimento

“Cedo decidi que deveria morar na rua. Avisei meus superiores. Queria ficar no Recife. Não pude. Quando cheguei aqui, formei um grupo de educadores de rua junto com as irmãs da Divina Providência. Ainda tenho amigos dos tempos em que fiz essa experiência. Hoje, quando vejo os andarilhos, me sinto chamado a viver desse modo de novo. Acho que por causa disso levamos os meninos para ensinar capoeira para os mendigos, uma vez por mês, na Boca Maldita. Daqui uns oito anos eu vou realizar esse sonho. Sei que as pessoas não entendem o meu desejo. O morador de rua é aquele esquecido em quem a gente não consegue chegar – é por isso. Tem um misticismo.

(...) “Não tenho um sapato. Meu hábito de carmelita eu dei para uma mulher que fez fraldas para os filhos com ele. Minha riqueza é esses óculos – mas eram óculos que ninguém queria.”

Fernando Gois tinha 13 anos quando deixou as roças de Cristo Rei, perto de Paranavaí, para ingressar no seminário dos frades carmelitas de Graciosa, também no Norte do Paraná. Ali, o menino, para quem comunicação era sinônimo de escrever cartas para o padre Vítor de Aparecida do Norte, viu um televisor pela primeira vez. Ficou hipnotizado. Se possível fosse, passaria os domingos inteiros assistindo ao programa do Sílvio Santos, seu preferido.

Foi ali, também, que pela primeira vez provou de uma mesa farta e comeu com garfo e faca, como nunca antes na casa de nove filhos de seu Manoel e dona Maria das Graças, ambos retirantes sergipanos. Ali, por fim, provou da culpa cristã – talvez pela primeira vez. “Eu ficava pensando nos meus irmãos, sem tevê e com pouca comida”, conta o homem de 52 anos, voz metálica, cabelos desgrenhados, pés em havaianas, transformado num dos símbolos latino-americanos da proteção à infância.

Gois é o idealizador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba, região metropolitana de Curitiba. O abrigo foi fundado em 1994 e hoje acolhe 80 crianças e adolescentes em situação de risco social. A “chácara”, como é chamada, conta com a admiração do Nobel da Paz – Adolfo Pérez Esquivel, que, aliás, deve visitá-la semana que vem – e goza de uma rede de simpatizantes e colaboradores tão extensa e díspare que só mesmo um sujeito como Gois poderia reunir, sem que alguém saísse no braço.

Há, claro, quem rejeite sua figura humilde – próxima à de um mendigo –, a exemplo de um famoso político paranaense, irritadiço com tamanha virtude, e que o amaldiçoou com o título de “monge pé de chinelo”. Mas são mais e maiores os que não resistem a sua autenticidade.

Impossível nomear o séquito – “talvez 500 pessoas”, arrisca ele. A lista vai do promotor Olympio Sotto Maior ao teólogo Carlos Meister, passando pela educadora e pesquisadora da UFPR Araci Asinelli da Luz, pela jornalista e ex-presa política Teresa Urban e pelo coronel Roberson Bondaruk, subchefe do Estado Maior da Polícia Militar no Paraná. A seu lado, Gois tem jovens como o administrador Rodrigo Navarro e veteranos como a suíça Marianne Spiller – ambos ativistas identificados com a obra nascida naqueles 10 alqueires à margem da BR-116, um atalho para os pequenos.

Tanto quanto os êxitos da comunidade – a anos-luz dos abrigos frios e institucionalizados –, impressiona a tanta gente a figura de Gois , sujeito para quem os discursos viscerais da Igreja Pro­­gressista, na qual se formou, se converteram milagrosamente em fala mansa, piedade profunda e entrega secreta, nos moldes da mística tradicional. Seu radicalismo está próximo de Charles de Foucault, asceta francês que viveu entre os tuaregues da Argélia, e de madre Teresa de Calcutá. Ambos foram os mais pobres entre os pobres.

Os Gois

A família de Fernando Gois emprestava os braços de fazenda em fazenda, descendo do Nordeste rumo ao Sul. Uma irmã – hoje freira – ensinava as letras aos miúdos. Quando ele foi para o seminário, a mãe esmolou cada item do enxoval: conseguiu uma peça de cada e se fez de rogada junto aos frades. “Eu sentia vergonha de abrir meu armário”, lembra ele.

Passou. Depois das benesses do claustro – alimentação, estudo, convivência, formação do espírito –, Gois se tornou um ilustrado. Seu temperamento cordato – perto dos santos, cuja vida devorava feito novelas de Janete Clair – só calcinou quando foi fazer o noviciado, em Recife. Lá, experimentou a fúria dos mártires.

Em meio ao preparo para os votos de castidade, pobreza e obediência, teve parte com dom Helder Câmara, mito da Teologia da Libertação, e com o visionário francês padre Alfredinho, radicado no Nordeste. “Tudo o que ele tinha cabia numa sacola. Em Crateús, sem trabalho, dormia na casa das prostitutas. Des­­prezado numa comunidade fran­­­ciscana onde ia pregar retiro – dormiu na casa do cachorro”, diverte-se. “Foi ao conhecê-lo que me decidi pela teologia da enxada.”

Não era papo de passeata. Em 1982, quando fez sua “primeira profissão religiosa” – ritual que demarca o ingresso oficial numa ordem ou congregação –, Gois sepultou o menino que adorava programas de calouros. O maior símbolo de sua nova fase eram os chinelos de dedo, apetrecho sob medida para sua condição de carmelita descalço. Ao abandonar de vez os sapatos e os discursos vazios, deu dor de cabeça a seus superiores.

Instalado num convento da Vila Fanny, em Curitiba, e cursando Filosofia na PUC, não tardou a juntar seus pertences e se mudar para uma área favelizada do bairro Lindoia, precisamente entre a Rua Oscar Wilde – um mártir nada ca­­­tó­­­lico dos costumes – e a Avenida Santa Bernadethe, a vidente humilhada e perseguida pelo clero. Aquela esquina não podia ser mais inspiradora para Gois e seus “confrades de luta” – Osni Romagna, agora advogado, e Euclides Mance, hoje filósofo de renome.

O trio formou uma comunidade inserida, nome dado às casas religiosas que, no embalo do enlace entre marxismo e religião, nas décadas de 70 e 80, abrigaram os que foram viver em casebres. A favela em que moraram – “escorada em cabos de vassoura” – virou sede da Comunidade Profeta Elias e assim permanece. Tem 40 metros quadrados. Foi da porta deste claustro de madeira velha que aqueles carmelitas enxergaram de vez o drama da infância. Gois, em particular, passou a circular com levas de meninos e meninas abandonados. E a peitar autoridades.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado em 1991, ainda estava em gestação. Mas para o “Carmelo da Lindoia” o documento já existia. Um juiz das antigas não sabia disso. E expulsou de suas fuças Gois e a leva de piás para os quais pedia proteção. “A PM pegava pesado. Batia. E o juiz nos negou o que era de direito.” O entrevero serviu para aproximar o frade daquele que seria um de seus maiores parceiros – o promotor Olympio Sotto Maior viu a cena e se rendeu ao monge pé de chinelo.

Nada impediu o pior. Gois acabaria preso por defender a gurizada “de rua”. Doutor Rosinha, dom Ladislau Biernaski e Sotto Maior saíram em defesa. Mas era tarde: o episódio causou mal-estar junto ao clero. No final de 1988, o garoto que renunciou aos sapatos e às benesses reservadas aos eleitos, abriu mão do maior de seus desejos – o de ser padre.

E viveu a mais abissal das experiências: diplomado em Filosofia, saiu para catar papel com os carrinheiros, dormiu embaixo de marquises, colheu café, fez jardins por trocados e alfabetizou pelo método Paulo Freire. Foi nessas andanças que conseguiu ouvir o que queriam os meninos: uma chácara, perto das árvores e dos animais, longe dos homens maus.

A saga é conhecida. Para conseguir uns nacos de terra em Mandirituba, Gois contou, claro, com Sotto Maior, com as irmãs da Divina Providência, com a benfeitora Rosy Pinheiro Lima, com a rede que se formou em torno dele e dos moleques. Os que resistiram: muitos se foram com a violência ou vencidos pelo HIV.

Hoje, o casario da 4 Pinheiros tem teto firme. A Universidade Positivo montou ali uma clínica de odontologia e o povo de Man­­dirituba vai até lá, rompendo com o isolamento da chácara. Oito meninos chegaram à faculdade. Mesmo com dinheiro curto, a vida corre, com outros desafios. As placas que indicavam o caminho da sede, por exemplo, foram retiradas. É preciso proteger a gurizada dos traficantes.

Gois, aliás, já bateu na porta de um deles, no Parolin, pedindo misericórdia a um adolescente. “Pedi para ele pôr a mão na cabeça. Não sentiu nada. Depois no coração. Não adiantou. Ele me pediu R$ 1,5 mil para não matar o guri. Venci no cansaço. Tive medo: eu nem sabia o que era uma boca de fumo.”

Epílogo

O ex-monge cuida dos meninos das primeiras horas da manhã à meia-noite, de domingo a do­­­mingo. Nem quarto para dormir tem: pernoita na biblioteca. Quando se abate, lê salmos, faz caminhadas, pede horinhas de silêncio no mosteiro das beneditinas em Quitandinha. Vaidade? Ver jogo do Corinthians na televisão.

Confidencia: quando fizer 60 anos, vai se tornar morador de rua. Brinco com ele se é por causa da­­­­quela história de que Jesus voltará despistado de mendigo. Sim – isso mesmo. “Os andarilhos são os últimos dos últimos.” O raciocínio se completa – um dia ele ouviu os meninos, agora precisa ouvir essa gente. Qual é a música? “Do mundo não se leva nada.”

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